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domingo, 11 de fevereiro de 2018

O Alambique de Maria Izabel, por Walnice Galvão*

Maria Izabel e seu alambique
Dona Maria Isabel, esta aí da imagem, ocupou o pódio de conferencista outro dia, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc SP, uma espécie rara: uma mulher fabricante de cachaça. Ou, em suas próprias palavras, uma “cachaceira”.
Esta raridade vem de Paraty, onde planta cana em curvas de nível no sítio à beira-mar Santo Antonio, passa-a pela moenda, destila-a no alambique, engarrafando e vendendo a cachaça de primeira e com appelation contrôlée (como dizem os franceses) que leva seu nome: Maria Izabel.
O nome, tal como figura no rótulo, já é todo um romance. Não tão narcisista, conta que tentou registrar o nome de Santo Antonio, que é o do sítio. Entretanto, todos os nomes de santo já estavam tomados. Um dia, chegando a um boteco de beira de estrada de fregueses seus, ouviu uma discussão sobre “a Maria Izabel”, e achou esquisito até perceber que a discussão era sobre a cachaça, não sobre sua pessoa: a cachaça já tinha nome na boca do povo.
Faltava o rótulo, que acabou tendo ilustre linhagem. Quem o criou, por gentileza de Liz Calder, fundadora da editora inglesa Bloomsbury e veranista de Paraty, foi o designer Jeff Fisher, ilustrador da saga de Harry Potter, florão da editora. Bem naïf, mostra uma paisagem tropical paradisíaca. Liz Calder, afora tudo isso, é também a criadora da Flip, ou Festa Literária Internacional de Paraty.
A conferencista conta com muita simplicidade que não decidiu mudar o mundo nem fazer uma grande bebida, mas começou plantando cana nesse pedaço de chão de apenas 4 hectares, na baía de Paraty, e, de passo a passo e quase sem perceber, quando viu estava fabricando uma excelente cachaça.
Não chegou lá sozinha, mas procurou produtores experientes de outros engenhos, consagrando-se à preciosa aprendizagem. Um deles foi o finado Pedro Peroca da Fazenda do Fundão, que lhe ensinou a técnica secreta da fermentação, que ela, em atenção a ele, não divulga de jeito nenhum.
Passou a experimentar diferentes barris e diferentes madeiras, até acertar em duas: o jequitibá que interfere menos e o carvalho que interfere mais, nos quais a bebida repousa no mínimo por um ano.
Faz questão de que tudo seja orgânico e biológico, com aproveitamento total. O bagaço da cana moída e o vinhoto vão adubar a plantação. Mantem uma enorme composteira, onde recolhe todo o lixo que sobra do processo, somado ao da casa e ao do galinheiro.   
Dá conta de tudo com apenas quatro funcionários; mas ela mesma não tem medo de trabalho e põe mãos à obra o ano inteiro, mais no período da safra anual, menos na entre-safra. Só o processo obrigatório de limpeza todo ano de todas as fases do processo – alambique e artefatos de apoio – para evitar a formação do óxido de cobre ou azinhavre, venenosíssimo, já é pesado. Tudo é areado com devoção e cuidado. A serpentina, que devido a sua forma e calibre não pode ser esfregada por dentro, é lavada com suco de limão-cravo (tal como nossas avós faziam com os tachos de cobre, adicionando sal), de que são necessários 40 litros por vez, o que obriga Maria Izabel a plantar limoeiros e armazenar os frutos, inclusive congelando-os.
A melhor cachaça, diz ela, é aquela feita com cana recém-cortada e, portanto, não estocada. Porque se demorar um pouco, a cana já começa a fermentar e resulta em acidez. Todo o processo exige rigor e pureza absoluta, porque qualquer imperfeição vai incidir sobre o gosto final.
A produção é pequena, variando entre 6 e 8 mil litros por ano, mas ela não tem intenção de aumentá-la, porque isso implicaria em abdicar do critério artesanal e da qualidade.
Ultimamente está tentando obter aprovação oficial para o resgate de uma preciosidade, a Laranjinha Celeste, denominação que descobriu nos papeis de seus antepassados “cachaceiros”. Trata-se de uma cachaça destilada com folhas de mexerica, que lhe conferem um perfume especial e a tornam azulada: donde o lindo nome. Antigamente, ela era fabricada por seu mentor e mestre, mas foi-se com ele. Ele era famoso pela “Azulada do Peroca da Fazenda do Fundão”, rótulo que é a soma de duas redondilhas maiores, esse verso típico da poesia lusobrasileira. Tomara que consiga.
*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP
GGN
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